domingo, 30 de janeiro de 2011

O Concurso




- Ele saiu para pescar... O anúncio pairou suspenso por alguns segundos enquanto os crânios ocos processavam a informação. Silêncio sepulcral, quebrado por uma longa vaia, um uivo uníssono e raivoso, que tomou conta do espaço normalmente deserto. O chefe dos Silveiras, um dos mais antigos moradores do lugar, dirigia as órbitas para os lados, o maxilar escancarado de indignação.

- Ele saiu para pescar!- repetiu para si mesmo, descrente que aquela frase pudesse ter ganhado o concurso. Tentou pensar o que levaria os jurados a elegê-la entre tantas outras mais profundas. Havia a dos Rugeri, imigrantes italianos que praticamente fundaram Serra da Mata. Foram deles o grupo escolar e a primeira padaria. O dito cravado com força na superfície tinha estilo e circunstância: Volto à terra de meus pais. Talvez fosse o único candidato em condições de tirar os Silveiras do pódio.

Mas havia também a aventura eternizada dos Penteados, com a inscrição em bronze: Hoje e sempre rumo ao sol. E a do Dr. Passanha, o primeiro pediatra do lugarejo: Parto sem dor, ambígua, mas sucinta.

O velho Silveira não se conformava. A família pediu-lhe calma, que voltasse para o leito e tentasse finalmente dormir. A mulher, que nunca lhe dirigira a palavra em vida, optou por um silêncio mórbido. Mas o bom Silveira, combatente da primeira Grande Guerra, ignorou os protestos e desceu lentamente duas alamedas para lamentar-se com seu amigo de infância e companheiro de viagens, inclusive desta.

Angenor não estava. – Mas que diabo...- logo arrependeu-se do pensamento incauto. Silveira sabia que não convinha citar o coisa-ruim em terras tão cheias de vãos e próximas da gruta quente. – Onde será que aquele velho esqueleto se meteu? Olhou por entre as cruzes, em direção ao portal oeste. Avistou um grupo reunido e dirigiu-se até eles, o corpo estalando com o caminhar.

Sempre se queixou da estrutura labiríntica das ruelas, mas recusava-se a pisar sobre o chão de quem já foi. Não por respeito pela sorte - ou falta de – dos semelhantes, ou por zelo ao passado daquela população, mas por puro medo de cair em cova aberta e não conseguir safar-se antes da pá de terra fria. Daí queria ver. Sua família, batendo de porta em porta, tentando resgatar seus restos colhidos em fossa alheia. Podia até ouvir o resmungo da esposa – “Aquele peste sempre foi de se perder pelo mundo. Vai ver está deitado na rua 45, junto com o que sobrou da Diná dos Prazeres, tentando erigir o que desabou para sempre”. Silveira sentiu uma ponta de lembrança percorrer-lhe a cavidade dos quadris.

Então era por temor de vários tipos que seguia entre os desvios repletos de história humana condensada na brevidade das palavras, obedecendo às curvas repentinas, contemplando as marcas inscritas no que Silveira preferia chamar de mármore. Lápide era triste demais. E todas as sentenças acenavam com uma mensagem para aqueles que um dia se juntarão a esses. Silveira repetia sempre a seus familiares, reunidos na mesma dobra de chão, que “nós que aqui estamos por vós esperamos” era a única promessa humana que certamente se cumpriria.



Na descida, Silveira viu uma cova fresca, rasgo farto em terra vermelha, como uma boca risonha. Ele sempre se emocionava com a chegada de um novo habitante, anunciada pelo solene sino da entrada. Achava que poderia angariar um aliado contra os Mendonças, família endinheirada, que trouxe para cá as mesmas barulheira e bebedeira com as quais saíram de lá. – “Essa gente precisa começar a se aquietar e parar de beber em grupo. Será que não aprenderam!?”

E entre as voltas de pensamento, onde o presente é histórico, o futuro é pretérito e todo passado imperfeito, Silveira chegou-se ao grupo, cujo chacoalho ósseo repentinamente emudeceu, como se sua face descarnada tivesse interrompido uma alegre celebração, igual àquelas que se faziam pelas missas de décimo ano. O recorde era do antigo vigário da matriz, cujo sobrinho ocupou o posto logo depois de sua partida. Trinta anos! Silveira confessava aos mais próximos que essa marca não deveria valer. – “Até aqui, onde o tempo dita e dura, a velha prática do senado se petrifica em privilégio! Não há saída?”, esbraveja, e, tivesse boca, teria espuma. É que morto tem horror a corrupção.

Alcançou o grupo querendo briga:

- Por que tanta festa para uma injustiça desse tamanho? E como não havia viva alma, literalmente, que se arriscasse a encarar o metro e noventa de ossos ainda fortes, Silveira prosseguiu: - Ele saiu para pescar! Por acaso estamos à beira de um rio, ou de um lago refrescante? A única memória de água que temos aqui são as poças da chuva que se acumulam nos vasos e servem de criadouro de mosquito, daqueles rajadinhos, que já engrossaram muita casa de repouso por aí. Isso é homenagem? Silveira recusava-se a usar o verbo pelo que o verbo traz. Preferia eufemismos. Cemitério e epitáfio eram tristes demais.

Silveira olhou para Angenor, visivelmente encabulado no centro do grupo e disparou:

- Por que tanta festa, Angenor?
- É, é, é, que, que, que a frase...
- Desembucha, homem!
- É que a frase que ganhou o concurso é de minha morada.
- Como é que é? Você ganhou o concurso com essa porcaria?

Angenor aprumou-se. Tinha seus brios.

- Como assim, porcaria? Está nas cartas aos Coríntios que São Pedro escreveu!, reagiu.
- Angenor, não é São Pedro, Angenor! É São Jorge! E o time é Corinthians! E eu não estou falando de futebol!, a voz vinha grossa e imponente. Silveira nunca fora chegado à Bíblia.
- Que futebol, Silveira?! Estou falando do novo testamento, da frase dita por São Pedro, para quem os cristãos eram pescadores de alma!
- Angenor, para quem nunca pescou lambari, você está sonhando alto, meu velho. Quer pescar alma? Justo aqui?, - o tom de zombaria começou a testar a resistência de uma amizade de décadas.

Silveira percebeu que o amigo tentava controlar-se. Na última vez que Angenor confrontou um colega, acabou perdendo um dedo da mão esquerda. Foi um trabalhão para achá-lo e a emenda nunca ficou muito boa.

O que Silveira não esperava era a pergunta que lhe fez o amigo.

- Pois bem, Silveira. Se a minha está tão ruim, diga-me qual é a sua. O que queria ver escrito em seu túmulo?

Silveira hesitou. – Pode ser túmulo para você, Angenor. Para mim, é monumento! – Na verdade, Silveira não queria revelar sua obra, pois haveria uma outra possibilidade, em pouco tempo, no início do século XXII, de ver seu verso eleito entre tantos. Mas teve que expor-se, pois o amigo poderia tomar seu silêncio por covardia.

- “Ele partiu para velejar!”, disse confiante, desprezando o olhar estupefato de Angenor.

***

É verdade que os mortos se surpreenderiam com o que os vivos escrevem sobre eles. Mas é muito mais verdade que o que os mortos dizem sobre si mesmos faz com que os vivos olhem com mais apego para a vida.

E que saiam para pescar. Sem dor, que voltem à terra de seus pais, partam para velejar. Rumo ao sol. Hoje. Porque o sempre é desejo sem raiz, é epitáfio para quem já desandou.




sexta-feira, 18 de junho de 2010

As Três Marias




Seu Honório estava muito doente. Com noventa e dois anos e uma vida curvada pela lavoura, tinha tido três filhas. Todas Marias que há muito tinham deixado o pequeno sítio no fundo das Minas Geraes e se mudado para São Paulo. Delas, sabia cada vez menos. Desde que ficou viúvo, as meninas vieram vê-lo com mais espaço, cada uma senhora de seu destino. Mas, naquela tarde, o velho havia cismado que queria beber cada uma delas nos olhos, e verter a saudade no aperto das mãos. Sabia que o tempo se esvaia nas longas noites de inverno, naquele céu profundo, de veludo negro, cravado de brilhantes. Cumpria agir. Já.

O filho do compadre, amigo de tantas colheitas, era caminhoneiro versado nas estradas do Sudeste. Abastecia o grande mercado com milho e soja, e a pequena vila com dezenas de encomendas, em constante vai-e-volta. A ele coube a missão de localizar as filhas. Tinha apenas o endereço de uma delas, em um bairro da zona leste da cidade-cimento. Na viagem que começava naquela semana, teria que encontrá-la e passar a ela a tarefa de localizar as irmãs. Nada de recado, de bilhete, de carta. Trazia na palavra, o relato da vela que se apaga aos poucos, mas que, tenaz, teimosa e trêmula, brilha num espasmo de luz antes de consumir-se em travessia.

Maria da Paixão era a filha mais velha. De religiosa, tinha pouco. Apenas uma imagem da Santa na cômoda do quarto quase vazio. Era Maria da paixão dos homens que lhe pagavam. Tinha pouca fé no amor e da vida aprendeu a labuta diária. Como chegara no primeiro bordel, já não importava. Não tinha medos, nem arrependimentos. Não tinha ilusões, nem planos. Apenas a certeza prática que viver era como caminhar. Um passo por vez, porque senão vem o tropeço ou o destrambelhar. O trem da vida vai. É a estação que fica. Recebeu o caminhoneiro como se fosse mais um dos clientes. Mas não se envergonhou do engano. Agradeceu a empreitada e prometeu encontrar as irmãs. A noite era escura. O céu cinza claro era redoma de fumaça cortada por lâmpadas de sódio. O primeiro orelhão estava ôco. No segundo, conseguiu.

Maria do Forró era casada com Zé da Sanfona. Tinham juntos um salão de baile, que ardia de gente ao som generoso do rítmo nordestino. Era feliz, ao lado de um homem que a tratava como parceira em tudo. O preço havia sido alto. Dois meninos deixados com a mãe do marido, que batia nela por sentir-se mais fraco. Um dia, ela atravessou a rua. Não foi à venda para batatas na sopa. Pegou um ônibus para o terminal Bandeiras, um trem para o terminal Jabaquara. Era simples assim. Terminal. Terminou com aquela vida de mulher humilhada e quis ser feliz. Não sabia se um dia voltaria para buscar os filhos. Mas não tinha certeza se há felicidade sem escolhas que cortam a carne. Desligou o telefone com saudades do pai, mas sem remorso. O importante era saber onde encontrar as raízes.

Maria do Brasil morava perto dali. Solteira, tinha um bar e duas paixões: a seleção canarinho e concurso de miss. Havia colado o retrato de cada jogador do elenco nacional ao lado de cada Miss Brasil dos últimos quarenta anos. Nas paredes, Garrincha fitava as pernas de Ieda Vargas em maiô discreto, Ademir da Guia era par de Martha Vasconcellos, o paulista Rivelino era escorte da carioca Lucia Petterle, Jairzinho e a eterna Vera Fischer, num mar de rostos viris e jovens beldades, do Rio Grande do Sul ao do Norte, pareados por critérios insondáveis, num estranho casamento patriótico entre a copa e a coroa, entre o campo e a passarela. E ela sabia a história de cada um daqueles personagens, enquanto aos poucos se esquecia da sua.

Chegaram ao sítio na mesma tarde, o sol já ido, a noite pronta. Seu Honório abraçou-as devagar, em silêncio, sem força nos braços, mas com o coração vestido para quermesse de São João. Fitou o céu imenso, a noite regada de estrelas. Lá estavam suas filhas, as três. Marias. No céu, também. Mintaka, Alnilan e Alnitaka. Uma ao lado da outra, com brilho azul, no cinturião de Orion. Honório pediu a Deus que soltasse o cinto, desatasse os nós, levantasse as amarras. Aos poucos, dissolveu-se. Onorio, norio, o rio, rio, io. Foi-se.

Quem ama, ilumina.

O Labirinto




Uma ambulância, dois carros de polícia e vários veículos de emissoras de rádio e televisão bloqueavam a entrada do sobrado, no topo da Rua Água Funda. O detetive Lacerda encarou o enxame de microfones com angústia. Em seus quarenta anos de profissão, não se lembrava de um caso mais surpreendente. Insânia e crueldade. A voz estava mais rouca que de costume, sinal de quase três noites de pouco descanso e muito cigarro. Negociou com o grupo de repórteres que o comprimiam que ele apenas faria um relato, sem responder ou especular sobre qualquer aspecto, já que ele próprio era um poço de perguntas.

Virou-se mais uma vez para contemplar a casa. Cravada entre rocha e buraco, significado tupi-guarani de Jabaquara, a construção era uma das primeiras do distrito. Embora datado de 1964, o sobrado dos Mirantes, como era conhecido, tinha janelas alinhadas em estilo colonial, como se o arquiteto tivesse erguido um monumento aos escravos fugitivos que buscavam refúgio na antiga mata ou aos viajantes que pernoitavam nas dependências do sítio da Ressaca.

Detetive Lacerda conhecia bem o que a imprensa buscava. Sabia que os profissionais que se acotovelavam ali preferiam impacto à precisão. O que vale são os televisores, imãs gigantes, que levam os espectadores estupefatos ao subterrâneo humano. Principalmente se o fato for tecido na trama do cru, do não-cozido, do real quase ficção.

Pausadamente, buscando controlar a ansiedade perante as luzes, câmeras e fios, o policial iniciou o enredo insondável. Precisava de um prólogo. Apaixonado por geologia, contou que o território local era caracterizado, em toda sua extensão, por uma escura estrutura basáltica, com muitas fissuras de diversos tamanhos e profundidade variável. O bairro era um intricado labirinto de pedra e fenda. Era por esse motivo que os antigos fazendeiros haviam escolhido o lugar como cemitério de escravos. Bastava jogar o corpo em um dos vãos e algumas pás de terra e cal. Simples e barato, no despojo do que não era humano.

A casa se apoiava sobre camadas de rocha, cujo centro era um enorme rasgo, uma abertura no magma, que a laje da cozinha vedava, mas à qual dava acesso por meio de um alçapão camuflado no assoalho. A lacuna era como uma enorme gruta, uma caverna munida de uma escada moldada na própria rocha. Surpreendentemente seco devido ao eficiente sistema de vedação, o interior, com quase dois metros de altura, se bifurcava em vários corredores pelos quais os passos ecoavam anos de tormenta e tortura. As passagens desembocavam em pequenas câmeras com geometria diversificada: circulares, retangulares, hexagonais, muitas vezes simétricas, como se houvera um cálculo diabólico presidindo a escavação. Eram como casulos. Dotados de lâmpadas de cores diferentes, os espaços abrigavam vários tipos de sarcófago, cujo tampão deslizava facilmente ao toque.

Cada um, uma tumba. Dentro delas, não havia cadáveres mumificados, mas retalhos de incontáveis corpos de homens, preservados na fatia, o torso em uma catacumba, mãos em outra; recortes satânicos de pernas, pés, pênis.. O corpo masculino, cortado em minucioso exame anatômico, quase legista. Ao lado de cada sepulcro, um código numérico, gravado em uma etiqueta metálica.

No centro daquela colméia de devassidão, um arquivo com pastas e fichas remetia aos detalhes de cada componente do monstruoso quebra-cabeça em busca do homem ideal. Nomes, versões do que a havia atraído naquele exemplar: o tronco forte de um, as pernas atléticas de outro; as mãos viris do entregador de pizza, os pés elegantes do professor de dança; o farto falo que os jeans apertados do pintor sugeriam. Rostos colecionados por algum atributo: a cor do olho, agora de vidro, a perfeição dos dentes em um sorriso descarnado no eterno suporte do maxilar. Uma retrospectiva prolixa de como a aventura se iniciara e porque deveria terminar. Esse usava perfume barato, aquele tinha hálito insalubre, o outro morava longe demais.

Mas, deles, a mulher quisera retirar a essência, dissecar o atributo, depurar o singular, que ela rasgaria com esmero, em incisões cirúrgicas, somando nos múltiplos catálogos as partes do homem de seus sonhos de danação e dor. Os registros davam detalhes de como cada encontro havia transcorrido: o cardápio do jantar, as diferentes posições em que os homens a haviam penetrado, insuspeitos da teia que lhes tragaria a vida no fluir do gozo. E tudo ali, organizado em dossiê, documentado com sórdidos pormenores. Uma cartografia de desejo e desvio, um mapa rizomático de luxúria e loucura. Um completo arquivo morto. Literalmente.

O nome da proprietária seria mantido em sigilo. Mas os vizinhos logo a identificaram em seus depoimentos prazerosamente estarrecidos. Tratava-se de Artúria da Tocha Mirante, rica herdeira de muita terra na região. Mulher fina, educada nas melhores escolas da capital, havia enviuvado cedo, herdando ainda mais fortuna do marido, filho único de uma pequena família de imigrantes. Comentava-se agora que um dos braços encontrados na saleta triangular tinha a tatuagem de um navio, com a qual o marido cravara na pele a chegada ao Brasil.

Uns diziam que a bela viúva recebia muitas visitas de homens mais jovens, os quais ela entretinha com todos os recursos de que dispunha. Seios grandes, corpo fogoso e generosa nos presentes, seduzia em espécie, se preciso. E imaginavam o macabro ritual que ela preparava com inteligência e rapidez, sem vestígio.

Até que um dia, apaixonou-se por alguns minutos. Não teve coragem de interromper o coito com a lâmina da navalha que mantinha sob a cama. Adiou o talho por um tempo. O peito arfando, contemplou o estudante que dormitava lânguido ao seu lado. O corpo esguio, o rosto apolíneo, a pele lisa, o rapaz era a imagem encarnada do vulto que a visitava todas as noites, nos sonhos úmidos e trêmulos. Artúria perguntou ao parceiro quando ela o veria novamente. Sonolento, o jovem resmungou que ia começar a temporada de provas e que teria muito que estudar. A mulher tateou a lâmina fria, pronta para o rasgo. Mas o golpe, normalmente agudo, no centro da carótida, esbarrou no braço forte que o impediu. A luta foi breve. Em alguns segundos, o rapaz a dominara, prendeu-a entre as pernas no avesso do prazer. Com o punho, acertou-lhe a nuca. Artúria não estava morta, apenas desfalecida. Tomado de terror, o amante tentou fugir pelos fundos. Tropeçou no dispositivo que abria o alçapão e viu erguer-se a tampa que selava as covas.

A polícia chegou em alguns minutos. O rapaz narrou o episódio com espanto e em espasmos. Quando o detetive Lacerda entrou no quarto, Artúria balançava da viga de madeira, a língua enegrecida, os olhos como que contemplando os horrores que semeara. A ambulância chegou sem sirene, sem alarde. Ao emergir do côncavo da gruta, o policial baixou a lápide, como em respeito à galeria de mortos.

Pensou na avó, que lhe havia ensinado o respeito pelas palavras. Lembrou-se de uma noite em que a velha lhe explicara que diabo significava aquilo que está no meio, entre a ordem do divino e a demência do humano. E, de todos os prazeres que nos fisgam, a região mais mediana, e, por extensão, diabólica, é a virilha, meu filho.

Artúria havia descoberto isso, ainda menina, no colo intumescido de seu tio, autor da primeira trinca, do indizível dolo que a tragou quando ela ainda tinha fita no cabelo.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Gruta


A gruta sempre me fascinou. O vão, o oco, a caverna. Aquilo que falta, a fissura, a falha.

De um lado, o concreto: a cava em maciço calcário ou dolomita, escavada pela ação química ou mecânica das águas de rios e chuvas, a galeria subterrânea formada pelas forças da natureza e explorada por sondas, cartografada por modelos matemáticos, que auscultam o núcleo planetário. Depósito de metais, minerais, sal e enxofre, óleo e gás, minas de ouro, diamante, mármore.

Por outro lado – ou sobretudo – o imaginário. Os testemunhos dos espeleólogos descrevem a estranheza e a angústia das trevas totais, os estrondos inidentificáveis seguidos por silêncio profundo, o tempo em suspensão num mundo frágil, sujeito a transformações iminentes, brutais, provocadas por desmoronamentos, terremotos, fusões vulcânicas, inundações. Nesse universo subterrâneo, imperam destruição e violência.

Daí derivam o simbólico e o interdito: imenso mundo desconhecido, inacessível, abrigo de práticas religiosas, espaço esotérico, refúgio filosófico, como na fórmula sofista: no escuro, a via. A gruta como aldeia de sonhos e segredos, esfera de medos, mitos, magia. A gruta como percurso iniciático sobre o desconhecido, a busca pela imortalidade, a descida aos infernos de Orfeu no resgate de Eurídice.

A dualidade da gruta constitui assim seu sentido: território aberto à exploração científica, ao conhecimento, à descoberta mineral. Mas também terreno de trevas, daquilo que está oculto, cercado por mistérios, sítios impenetráveis, cujo aspecto inenarrável irriga o mundo. Nesse embate, deparamo-nos com a multiplicidade de pares semânticos: realidade e ilusão, vida e morte, luz e treva, fertilidade e esterilidade, racionalidade e irracionalidade, lucidez e loucura, consciência e inconsciente, yin e yang. Um universo polifônico que dá apoio à visão platônica: o mundo aqui das aparências e as aparências de um (sub)mundo de lá.

A ambigüidade vem também da concretude e do fluido. A gruta está sob os pés sem estar sob a vista. Ao reproduzir o mundo de cima, a gruta o deforma, faz dele caricaturas, filtra dele a luz para impor a sombra. O mundo de baixo tem como referência o mundo de cima, uma coletânea infindável de representações arquetípicas, destroços de memória antiga, de um mundo esquecido, habitado por tudo que já não é humano. A gruta une o paradoxo de um mundo estéril, mas cheio de vida. É nas trevas que se dá a germinação. As entranhas da terra fertilizam, abrigam, iluminam.

Espaço demoníaco, a fenda fantasmagórica acolhe a noite dos tempos, o mundo ctônico, porta de entrada para um lugar do qual na há saída, povoado por criaturas degeneradas, magos, monstros, fantasmas. Hordas de espíritos, gnomos, dragões, ciclopes cujo hálito dá forma às armas dos deuses. Satã habita cavernas sulfúricas, os oráculos povoam grutas taciturnas, sepulturas profundas. A gruta do oráculo de Trofônio, por exemplo, tem duas fontes – uma do esquecimento para apagar a lembrança dos mortos; e outra, da memória, para o visitante lembrar-se de quem foi e do que disse o oráculo. A falha na rocha leva a um túnel ao fim do qual um santuário subterrâneo é palco da revelação. A gruta homérica também tem duplo portal. A cratera de Boreu, para a entrada dos mortais, e a abertura de Notos, para a entrada dos deuses.

A gruta ocupa também espaço na tradição judaico-cristã. É uma gruta em Belém que acolhe o menino Jesus e que, em Gólgota, sepulta o filho de Deus. É uma caverna na Ilha de Patmos que abriga São João enquanto escreve o Apocalipse. É no interior de uma falha de pedra no deserto da Dalmácia que São Jerônimo busca guarita para traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para o latim. É na gruta de Lurdes que Bernadete Soubirou vislumbra a virgem. No islamismo, Maomé se retira em uma gruta, no Monte de Hira, próximo a Meca, para escrever a estrofe XCVI do alcorão.

Local de meditação contemplativa para Epicuro, é na formação rochosa sob o chão de Cumes que os senadores romanos buscam saída para cada crise da Roma republicana.

Santuário no qual se desenrolam rituais iniciáticos, artes divinatórias, terapias curativas, a gruta abriga sibilas, sacerdotisas, magas, pítias. Advinhas predizem o futuro no fundo da fenda de Aigai. É uma gruta de forma trapezoidal, próxima ao lago de Averno, em Nápoles, que guia Enéas para fundar Roma.

Morada de conhecimento e revelação, é em uma gruta que Quíron se distancia da delinqüência dos sátiros e adquire cultura civilizadora com a qual ensina toda uma galeria de heróis, entre os quais Hércules, Teseu e Jasão. Os deuses nascem em vãos de pedra: Zeus, no antro do Monte Ida, em Creta; Hermes, numa gruta da Arcádia; Hipnos, deus do sono, mora em uma gruta atravessada pelo rio do esquecimento, Lete. Entre os Maias, a deusa Lua é hóspede de uma gruta.

A gruta tem vocação ao segredo. De um lado, serve como quarto privado num longo corredor de prazeres: Ulisses e Calipso, em Ogívia; Tristão e Isolda, na gruta de Minne, na Cornuália; ninfas e sátiros, entre os quais Pan e Príapo. A gruta serve ainda como esconderijo. Nela se produzem armas de destruição, como os raios de Zeus, ou os aparatos com os quais Horus derrotou seu irmão, Seth, na cosmogonia egípcia. Ela serve de dispensa, onde o ciclope Polifemo estoca alimentos terrenos e divinos.

A gruta se ergue como monumento histórico. Nossos ancestrais registram em paredes de rocha toda uma narrativa coesa da oposição entre mundo real e mundo sagrado. As pinturas rupestres dão testemunho que a dualidade de sentidos inscritos na caverna é um dos elementos mais primitivos da constituição identitária do homem.

Esse é o percurso que fiz. Dual, ambíguo, heterogêneo, multifacetado. Quis narrar contos grotescos. Não no sentido romântico, mas no sentido dialético que esbocei aqui. Pensei em microcosmos, um vão para cada pecado e uma abertura para cada virtude. A força masculina do erro em trânsito e trâmite com a dinâmica feminina da absolvição. Guiado por Bachelard, entro no oco com uma vela nas mãos, e vejo a dança de múltiplas sombras na parede escura.

A gruta assusta. Mas no tremor do susto, o véu que se levanta, a bruma que se ergue. Antes que caia a noite de novo. Ou que a vela se consuma no calor da catacumba.







Os Sete:

Ira: Jandira
Preguiça: O dia seguinte
Avareza: A cesta de sonhos
Vaidade: Valéria
Gula: Delito
Inveja: Diva
Luxúria: O labirinto


As Sete:

Paciência: Achados e Perdidos
Diligência: Maria
Generosidade: Rio Negro
Humildade: As Três Marias
Temperança: A Velha Filó
Caridade:
Castidade: Poluição

domingo, 9 de maio de 2010

A Cesta de Sonhos


Tereza cultivava os sonhos da noite como quem planta uma horta. Queria nutrir-se deles, revivê-los em detalhe na manhã seguinte. Seu universo noturno era povoado de imagens coloridas, que ganhavam lucidez quando relembradas à luz do dia.

Sonhava com campos de girassóis gigantes, banhados em um amarelo intenso que ela escalava com facilidade. Sentada no banco da praça, entendia as flores como uma metáfora do sol. O sol multiplicado no milagre de cada dia. Sempre gostou do sol, que lhe aquecia o corpo franzino e lhe refazia o equilíbrio.

Outras vezes, visitava construções góticas, de cujos segredos havia sido testemunha. O padre assassinado, o filho bastardo do rei, os rituais secretos de um grupo de nobres. Nesse labirinto de pedra e silêncio, via sua própria família. O pai, morto há muito tempo, em briga de bar; o meio-irmão que sua mãe lhe dera alguns anos depois; os professores da escola municipal, onde era assistente, que a tratavam com polidez, mas sem envolvimento.

Algumas noites, prospectava reservas de diamantes, perto da curva do rio, com os quais fazia colares e coroas, num tesouro de valor incalculável. Com os olhos abertos, Tereza decifrava o que os olhos fechados lhe plantavam na memória. Essa coleção de pedraria era a poupança que erguia com lento suor para um dia ir-se dali.

Havia sonhos em que ela molhava os pés descalços em minas de água cristalina, paridas em lençóis subterrâneos que ela percorria, imersa, respirando por guelras que lhe brotavam no lugar das orelhas. O dia dissipava em luz o que a noite escondia em espessura de sentido. Tereza sabia que a água era o trem por onde ela poderia fluir, transformar-se em peixe. E partir.

Sonhava sobre plantas medicinais que aliviavam a dor e curavam tumores com apenas um emplastro. Aqui, Tereza reconhecia a vontade enorme de livrar-se das terríveis pinceladas de uma hérnia de disco que ela teria que operar um dia, se quisesse andar ereta e evitar as crises que a prendiam na cama em noite quente de quermesse.

E Tereza sonhava na vastidão da noite e replantava vida na clareza do dia. Ávida por suas aventuras noturnas, a mulher começou a querer dormir mais longamente. Primeiro, comiam-se algumas horas da manhã, o que lhe fazia chegar atrasada para o trabalho. Depois, vieram as sonecas após o almoço, que, breves, esticaram-se em sonos mais contínuos.

Daí, Tereza começou a dormir o dia inteiro, levantando-se apenas para aliviar-se. E, nesse sono sem trégua, um sonho após o outro. Tereza reescrevia sua história com imagens que tecia feito aranha.

A mulher queria mais. Agora não bastava sonhar seus sonhos. Queria sonhar aqueles de cada morador do vilarejo. Como um mar revolto, varria com avareza as imagens que brotavam das cabeças adormecidas, antes que elas trouxessem repouso à alma. Sentinela incansável, a mulher vislumbrava na bruma do irreal o enredo desconexo de seus semelhantes e fincava nele sua autoria. Roubava-lhes o sonho antes dele amadurecer. Cérbero faminto, apropriava-se com destreza da narrativa alheia, que tomava para si, como vidas possíveis que não viveria. Mas que devorava sem salivar. Privava do descanso uma cidade inteira, porque dormir sem sonhar é viver sem existir. E Tereza prosseguia por dias e noites, invadindo o privado, seqüestrando o íntimo, tomando por seu o que não lhe era devido.

A pequena cidade foi perdendo o vigor. Durante o dia, os homens não tinham força para a lida, as mulheres sentiam-se fracas nas tarefas, as crianças, irritadiças, não queriam brincar. Os velhos já não podiam mais encarar sua própria finitude; os jovens sentiam horror ao envelhecer. Aos poucos, o vilarejo ia desatando os nós que soldam as pessoas. O padeiro desdenhou a massa, o farmacêutico confundiu as fórmulas, o vigário esqueceu as preces, o coveiro não fechou a sepultura. A cidadezinha ia-se diluindo em limbo, lânguida e extenuada.

Indiferente ao calor dos dias, ou ao frescor das noites, os habitantes negligenciaram a aparência. Abandonaram os banhos, esqueceram-se das roupas, andavam pelas ruas sem saber ao certo porque iam, de onde vinham. E confundiam-se uns com os outros. Uma mulher achava que o vizinho era seu filho, enquanto um homem tomava o compadre por avô. Já não se lembravam mais dos nomes de batismo. Zumbis, caminhavam com passos curtos, hesitando entre o passo dado e o próximo em esboço. E tentavam desesperadamente dormir. Mas se dormiam, não era repouso que encontravam. Era uma noite em negro, sono sem sonho, morte em vida.
Só Tereza florescia, a pele rosada, o ventre pleno, como abelha rainha prenha de mel, fincando na colméia o ferrão do egoísmo.

Um dia, um viajante buscou guarita. O hotel era pousada do abandono. As pessoas em farrapos tinham os olhos vermelhos, o rosto macilento, os dedos longos. Perguntou o que acontecia. Ninguém lhe soube explicar. Apenas que pairava sobre um vilarejo uma enorme exaustão, uma seca de descanso, um mundo de sofrimento. Amedrontado, o homem deixou de seguir viagem, pelo tardio da hora.

Tentou dormir. Mas o quarto tinha um cheiro insuportável, mistura de mofo e mijo. Resolveu caminhar pela noite quente. Viu que as janelas das casas continuavam abertas, as portas por fechar. Apenas uma morada, na descida que leva ao cemitério, recebia a noite como se deve. Curioso, colou o ouvido na janela em busca de sinal de sanidade. Nada. Foi até a varanda e levou o rosto à porta, que apenas encostada, abriu-se com o toque. Da sala pequena, o homem avistou o quarto. Uma pequena luz de vela tremia no querosene que a beliscava. Entrou. Quisera não ter entrado.

Na cama, Tereza estava faminta. Com os cabelos em desalinho, o rosto em sorriso demente, lhe perguntou com voz de treva:

- Onde está meu sonho? O que fez com ele? Como pode não sonhar o que é meu? Como ousa não dormir, e dormir, não sonhar?

O tiro vazou-lhe o olho e cravou sangue e cérebro na parede.

Ninguém acordou.

A Velha Filó



Jóia da pequena cidade, a velha Filó era devota de muitos santos que dispunha em permanente procissão sobre a cômoda de madeira escura. Mulher forte e independente, tinha uma outra paixão. Gostava do amanhecer. Despertava muito cedo e se preparava para o grande encontro com o criador e mais um mergulho em si mesma.

A varanda da casa antiga, no alto da rua sem saída, era sua sala de cinema, onde saudava contemplativa o esplendor da manhã parturiente. O escuro do céu se esvaía pouco a pouco, como se a noite se cansasse das estrelas. Daí, vinham os pequenos lampejos de cor no fundo do vale, promessas de luz para mais um dia de seus quase cem anos. Lentamente, os pássaros transformavam os pios em gorgeios , verdadeira trilha sonora aos matizes de vermelho, laranja e azul. O quintal era pura fragrância de rosas.

A bisa Filó sentava na cadeira de balanço, embrulhada em um xale, que lhe era como segunda pele. A caneca de chá fumegante aquecia as mãos e trazia ao paladar o sabor de camomila. Quieta e atenta, na paz de quem já viu de tudo um tanto, saudava cada pequena alteração, no que chamava a grande tela do Senhor. Os olhos repletos de céu varriam a imensidão. Tudo era promessa cumprida, milagre paupável de uma existência quase plena.

E era engano chamar aquilo de passa-tempo. Para ela, o nome era volta-tempo. Imersa no espetáculo, a mulher se lembrava de uma vida longa. Da fazenda perdida ainda menina, do véu de renda francesa que ganhara da madrinha para a primeira comunhão. Das quermesses, dos tropeiros, do primeiro comichão. E a cada rasgo de luz, iluminavam-se memórias, coloriam-se lembranças. O primeiro filho, o segundo, o terceiro, num rosário de rostinhos. Foram oito, que, férteis como ela, deram-lhe netos e bisnetos, numa sucessão de nomes, datas e fraldas.

Assim voltava no tempo, a bordo de tudo que se foi, mas que ainda é na lembrança da gente. Com a alma encharcada de som e luz, a bisa ficava um bom tempo na varanda, até que sua ajudante chegasse e a levasse para o banho diário, regado a lavanda e pó-de-arroz.

Como de costume, às sete-e-meia, a voz amiga da acompanhante saudou bisa Filó.

- Bom dia, dona Filó! Gostou do amanhecer? A pergunta era melódica, doce.

A resposta é que não veio.

- Dona Filó? Dona...!

O rosto plácido, os olhos calmos, a velha Filó se juntara ao sol.

segunda-feira, 26 de abril de 2010


Coaching consiste em exilar os fantasmas, calar as vozes críticas, detonar os sabotadores.