domingo, 30 de janeiro de 2011

O Concurso




- Ele saiu para pescar... O anúncio pairou suspenso por alguns segundos enquanto os crânios ocos processavam a informação. Silêncio sepulcral, quebrado por uma longa vaia, um uivo uníssono e raivoso, que tomou conta do espaço normalmente deserto. O chefe dos Silveiras, um dos mais antigos moradores do lugar, dirigia as órbitas para os lados, o maxilar escancarado de indignação.

- Ele saiu para pescar!- repetiu para si mesmo, descrente que aquela frase pudesse ter ganhado o concurso. Tentou pensar o que levaria os jurados a elegê-la entre tantas outras mais profundas. Havia a dos Rugeri, imigrantes italianos que praticamente fundaram Serra da Mata. Foram deles o grupo escolar e a primeira padaria. O dito cravado com força na superfície tinha estilo e circunstância: Volto à terra de meus pais. Talvez fosse o único candidato em condições de tirar os Silveiras do pódio.

Mas havia também a aventura eternizada dos Penteados, com a inscrição em bronze: Hoje e sempre rumo ao sol. E a do Dr. Passanha, o primeiro pediatra do lugarejo: Parto sem dor, ambígua, mas sucinta.

O velho Silveira não se conformava. A família pediu-lhe calma, que voltasse para o leito e tentasse finalmente dormir. A mulher, que nunca lhe dirigira a palavra em vida, optou por um silêncio mórbido. Mas o bom Silveira, combatente da primeira Grande Guerra, ignorou os protestos e desceu lentamente duas alamedas para lamentar-se com seu amigo de infância e companheiro de viagens, inclusive desta.

Angenor não estava. – Mas que diabo...- logo arrependeu-se do pensamento incauto. Silveira sabia que não convinha citar o coisa-ruim em terras tão cheias de vãos e próximas da gruta quente. – Onde será que aquele velho esqueleto se meteu? Olhou por entre as cruzes, em direção ao portal oeste. Avistou um grupo reunido e dirigiu-se até eles, o corpo estalando com o caminhar.

Sempre se queixou da estrutura labiríntica das ruelas, mas recusava-se a pisar sobre o chão de quem já foi. Não por respeito pela sorte - ou falta de – dos semelhantes, ou por zelo ao passado daquela população, mas por puro medo de cair em cova aberta e não conseguir safar-se antes da pá de terra fria. Daí queria ver. Sua família, batendo de porta em porta, tentando resgatar seus restos colhidos em fossa alheia. Podia até ouvir o resmungo da esposa – “Aquele peste sempre foi de se perder pelo mundo. Vai ver está deitado na rua 45, junto com o que sobrou da Diná dos Prazeres, tentando erigir o que desabou para sempre”. Silveira sentiu uma ponta de lembrança percorrer-lhe a cavidade dos quadris.

Então era por temor de vários tipos que seguia entre os desvios repletos de história humana condensada na brevidade das palavras, obedecendo às curvas repentinas, contemplando as marcas inscritas no que Silveira preferia chamar de mármore. Lápide era triste demais. E todas as sentenças acenavam com uma mensagem para aqueles que um dia se juntarão a esses. Silveira repetia sempre a seus familiares, reunidos na mesma dobra de chão, que “nós que aqui estamos por vós esperamos” era a única promessa humana que certamente se cumpriria.



Na descida, Silveira viu uma cova fresca, rasgo farto em terra vermelha, como uma boca risonha. Ele sempre se emocionava com a chegada de um novo habitante, anunciada pelo solene sino da entrada. Achava que poderia angariar um aliado contra os Mendonças, família endinheirada, que trouxe para cá as mesmas barulheira e bebedeira com as quais saíram de lá. – “Essa gente precisa começar a se aquietar e parar de beber em grupo. Será que não aprenderam!?”

E entre as voltas de pensamento, onde o presente é histórico, o futuro é pretérito e todo passado imperfeito, Silveira chegou-se ao grupo, cujo chacoalho ósseo repentinamente emudeceu, como se sua face descarnada tivesse interrompido uma alegre celebração, igual àquelas que se faziam pelas missas de décimo ano. O recorde era do antigo vigário da matriz, cujo sobrinho ocupou o posto logo depois de sua partida. Trinta anos! Silveira confessava aos mais próximos que essa marca não deveria valer. – “Até aqui, onde o tempo dita e dura, a velha prática do senado se petrifica em privilégio! Não há saída?”, esbraveja, e, tivesse boca, teria espuma. É que morto tem horror a corrupção.

Alcançou o grupo querendo briga:

- Por que tanta festa para uma injustiça desse tamanho? E como não havia viva alma, literalmente, que se arriscasse a encarar o metro e noventa de ossos ainda fortes, Silveira prosseguiu: - Ele saiu para pescar! Por acaso estamos à beira de um rio, ou de um lago refrescante? A única memória de água que temos aqui são as poças da chuva que se acumulam nos vasos e servem de criadouro de mosquito, daqueles rajadinhos, que já engrossaram muita casa de repouso por aí. Isso é homenagem? Silveira recusava-se a usar o verbo pelo que o verbo traz. Preferia eufemismos. Cemitério e epitáfio eram tristes demais.

Silveira olhou para Angenor, visivelmente encabulado no centro do grupo e disparou:

- Por que tanta festa, Angenor?
- É, é, é, que, que, que a frase...
- Desembucha, homem!
- É que a frase que ganhou o concurso é de minha morada.
- Como é que é? Você ganhou o concurso com essa porcaria?

Angenor aprumou-se. Tinha seus brios.

- Como assim, porcaria? Está nas cartas aos Coríntios que São Pedro escreveu!, reagiu.
- Angenor, não é São Pedro, Angenor! É São Jorge! E o time é Corinthians! E eu não estou falando de futebol!, a voz vinha grossa e imponente. Silveira nunca fora chegado à Bíblia.
- Que futebol, Silveira?! Estou falando do novo testamento, da frase dita por São Pedro, para quem os cristãos eram pescadores de alma!
- Angenor, para quem nunca pescou lambari, você está sonhando alto, meu velho. Quer pescar alma? Justo aqui?, - o tom de zombaria começou a testar a resistência de uma amizade de décadas.

Silveira percebeu que o amigo tentava controlar-se. Na última vez que Angenor confrontou um colega, acabou perdendo um dedo da mão esquerda. Foi um trabalhão para achá-lo e a emenda nunca ficou muito boa.

O que Silveira não esperava era a pergunta que lhe fez o amigo.

- Pois bem, Silveira. Se a minha está tão ruim, diga-me qual é a sua. O que queria ver escrito em seu túmulo?

Silveira hesitou. – Pode ser túmulo para você, Angenor. Para mim, é monumento! – Na verdade, Silveira não queria revelar sua obra, pois haveria uma outra possibilidade, em pouco tempo, no início do século XXII, de ver seu verso eleito entre tantos. Mas teve que expor-se, pois o amigo poderia tomar seu silêncio por covardia.

- “Ele partiu para velejar!”, disse confiante, desprezando o olhar estupefato de Angenor.

***

É verdade que os mortos se surpreenderiam com o que os vivos escrevem sobre eles. Mas é muito mais verdade que o que os mortos dizem sobre si mesmos faz com que os vivos olhem com mais apego para a vida.

E que saiam para pescar. Sem dor, que voltem à terra de seus pais, partam para velejar. Rumo ao sol. Hoje. Porque o sempre é desejo sem raiz, é epitáfio para quem já desandou.