sexta-feira, 18 de junho de 2010

As Três Marias




Seu Honório estava muito doente. Com noventa e dois anos e uma vida curvada pela lavoura, tinha tido três filhas. Todas Marias que há muito tinham deixado o pequeno sítio no fundo das Minas Geraes e se mudado para São Paulo. Delas, sabia cada vez menos. Desde que ficou viúvo, as meninas vieram vê-lo com mais espaço, cada uma senhora de seu destino. Mas, naquela tarde, o velho havia cismado que queria beber cada uma delas nos olhos, e verter a saudade no aperto das mãos. Sabia que o tempo se esvaia nas longas noites de inverno, naquele céu profundo, de veludo negro, cravado de brilhantes. Cumpria agir. Já.

O filho do compadre, amigo de tantas colheitas, era caminhoneiro versado nas estradas do Sudeste. Abastecia o grande mercado com milho e soja, e a pequena vila com dezenas de encomendas, em constante vai-e-volta. A ele coube a missão de localizar as filhas. Tinha apenas o endereço de uma delas, em um bairro da zona leste da cidade-cimento. Na viagem que começava naquela semana, teria que encontrá-la e passar a ela a tarefa de localizar as irmãs. Nada de recado, de bilhete, de carta. Trazia na palavra, o relato da vela que se apaga aos poucos, mas que, tenaz, teimosa e trêmula, brilha num espasmo de luz antes de consumir-se em travessia.

Maria da Paixão era a filha mais velha. De religiosa, tinha pouco. Apenas uma imagem da Santa na cômoda do quarto quase vazio. Era Maria da paixão dos homens que lhe pagavam. Tinha pouca fé no amor e da vida aprendeu a labuta diária. Como chegara no primeiro bordel, já não importava. Não tinha medos, nem arrependimentos. Não tinha ilusões, nem planos. Apenas a certeza prática que viver era como caminhar. Um passo por vez, porque senão vem o tropeço ou o destrambelhar. O trem da vida vai. É a estação que fica. Recebeu o caminhoneiro como se fosse mais um dos clientes. Mas não se envergonhou do engano. Agradeceu a empreitada e prometeu encontrar as irmãs. A noite era escura. O céu cinza claro era redoma de fumaça cortada por lâmpadas de sódio. O primeiro orelhão estava ôco. No segundo, conseguiu.

Maria do Forró era casada com Zé da Sanfona. Tinham juntos um salão de baile, que ardia de gente ao som generoso do rítmo nordestino. Era feliz, ao lado de um homem que a tratava como parceira em tudo. O preço havia sido alto. Dois meninos deixados com a mãe do marido, que batia nela por sentir-se mais fraco. Um dia, ela atravessou a rua. Não foi à venda para batatas na sopa. Pegou um ônibus para o terminal Bandeiras, um trem para o terminal Jabaquara. Era simples assim. Terminal. Terminou com aquela vida de mulher humilhada e quis ser feliz. Não sabia se um dia voltaria para buscar os filhos. Mas não tinha certeza se há felicidade sem escolhas que cortam a carne. Desligou o telefone com saudades do pai, mas sem remorso. O importante era saber onde encontrar as raízes.

Maria do Brasil morava perto dali. Solteira, tinha um bar e duas paixões: a seleção canarinho e concurso de miss. Havia colado o retrato de cada jogador do elenco nacional ao lado de cada Miss Brasil dos últimos quarenta anos. Nas paredes, Garrincha fitava as pernas de Ieda Vargas em maiô discreto, Ademir da Guia era par de Martha Vasconcellos, o paulista Rivelino era escorte da carioca Lucia Petterle, Jairzinho e a eterna Vera Fischer, num mar de rostos viris e jovens beldades, do Rio Grande do Sul ao do Norte, pareados por critérios insondáveis, num estranho casamento patriótico entre a copa e a coroa, entre o campo e a passarela. E ela sabia a história de cada um daqueles personagens, enquanto aos poucos se esquecia da sua.

Chegaram ao sítio na mesma tarde, o sol já ido, a noite pronta. Seu Honório abraçou-as devagar, em silêncio, sem força nos braços, mas com o coração vestido para quermesse de São João. Fitou o céu imenso, a noite regada de estrelas. Lá estavam suas filhas, as três. Marias. No céu, também. Mintaka, Alnilan e Alnitaka. Uma ao lado da outra, com brilho azul, no cinturião de Orion. Honório pediu a Deus que soltasse o cinto, desatasse os nós, levantasse as amarras. Aos poucos, dissolveu-se. Onorio, norio, o rio, rio, io. Foi-se.

Quem ama, ilumina.

O Labirinto




Uma ambulância, dois carros de polícia e vários veículos de emissoras de rádio e televisão bloqueavam a entrada do sobrado, no topo da Rua Água Funda. O detetive Lacerda encarou o enxame de microfones com angústia. Em seus quarenta anos de profissão, não se lembrava de um caso mais surpreendente. Insânia e crueldade. A voz estava mais rouca que de costume, sinal de quase três noites de pouco descanso e muito cigarro. Negociou com o grupo de repórteres que o comprimiam que ele apenas faria um relato, sem responder ou especular sobre qualquer aspecto, já que ele próprio era um poço de perguntas.

Virou-se mais uma vez para contemplar a casa. Cravada entre rocha e buraco, significado tupi-guarani de Jabaquara, a construção era uma das primeiras do distrito. Embora datado de 1964, o sobrado dos Mirantes, como era conhecido, tinha janelas alinhadas em estilo colonial, como se o arquiteto tivesse erguido um monumento aos escravos fugitivos que buscavam refúgio na antiga mata ou aos viajantes que pernoitavam nas dependências do sítio da Ressaca.

Detetive Lacerda conhecia bem o que a imprensa buscava. Sabia que os profissionais que se acotovelavam ali preferiam impacto à precisão. O que vale são os televisores, imãs gigantes, que levam os espectadores estupefatos ao subterrâneo humano. Principalmente se o fato for tecido na trama do cru, do não-cozido, do real quase ficção.

Pausadamente, buscando controlar a ansiedade perante as luzes, câmeras e fios, o policial iniciou o enredo insondável. Precisava de um prólogo. Apaixonado por geologia, contou que o território local era caracterizado, em toda sua extensão, por uma escura estrutura basáltica, com muitas fissuras de diversos tamanhos e profundidade variável. O bairro era um intricado labirinto de pedra e fenda. Era por esse motivo que os antigos fazendeiros haviam escolhido o lugar como cemitério de escravos. Bastava jogar o corpo em um dos vãos e algumas pás de terra e cal. Simples e barato, no despojo do que não era humano.

A casa se apoiava sobre camadas de rocha, cujo centro era um enorme rasgo, uma abertura no magma, que a laje da cozinha vedava, mas à qual dava acesso por meio de um alçapão camuflado no assoalho. A lacuna era como uma enorme gruta, uma caverna munida de uma escada moldada na própria rocha. Surpreendentemente seco devido ao eficiente sistema de vedação, o interior, com quase dois metros de altura, se bifurcava em vários corredores pelos quais os passos ecoavam anos de tormenta e tortura. As passagens desembocavam em pequenas câmeras com geometria diversificada: circulares, retangulares, hexagonais, muitas vezes simétricas, como se houvera um cálculo diabólico presidindo a escavação. Eram como casulos. Dotados de lâmpadas de cores diferentes, os espaços abrigavam vários tipos de sarcófago, cujo tampão deslizava facilmente ao toque.

Cada um, uma tumba. Dentro delas, não havia cadáveres mumificados, mas retalhos de incontáveis corpos de homens, preservados na fatia, o torso em uma catacumba, mãos em outra; recortes satânicos de pernas, pés, pênis.. O corpo masculino, cortado em minucioso exame anatômico, quase legista. Ao lado de cada sepulcro, um código numérico, gravado em uma etiqueta metálica.

No centro daquela colméia de devassidão, um arquivo com pastas e fichas remetia aos detalhes de cada componente do monstruoso quebra-cabeça em busca do homem ideal. Nomes, versões do que a havia atraído naquele exemplar: o tronco forte de um, as pernas atléticas de outro; as mãos viris do entregador de pizza, os pés elegantes do professor de dança; o farto falo que os jeans apertados do pintor sugeriam. Rostos colecionados por algum atributo: a cor do olho, agora de vidro, a perfeição dos dentes em um sorriso descarnado no eterno suporte do maxilar. Uma retrospectiva prolixa de como a aventura se iniciara e porque deveria terminar. Esse usava perfume barato, aquele tinha hálito insalubre, o outro morava longe demais.

Mas, deles, a mulher quisera retirar a essência, dissecar o atributo, depurar o singular, que ela rasgaria com esmero, em incisões cirúrgicas, somando nos múltiplos catálogos as partes do homem de seus sonhos de danação e dor. Os registros davam detalhes de como cada encontro havia transcorrido: o cardápio do jantar, as diferentes posições em que os homens a haviam penetrado, insuspeitos da teia que lhes tragaria a vida no fluir do gozo. E tudo ali, organizado em dossiê, documentado com sórdidos pormenores. Uma cartografia de desejo e desvio, um mapa rizomático de luxúria e loucura. Um completo arquivo morto. Literalmente.

O nome da proprietária seria mantido em sigilo. Mas os vizinhos logo a identificaram em seus depoimentos prazerosamente estarrecidos. Tratava-se de Artúria da Tocha Mirante, rica herdeira de muita terra na região. Mulher fina, educada nas melhores escolas da capital, havia enviuvado cedo, herdando ainda mais fortuna do marido, filho único de uma pequena família de imigrantes. Comentava-se agora que um dos braços encontrados na saleta triangular tinha a tatuagem de um navio, com a qual o marido cravara na pele a chegada ao Brasil.

Uns diziam que a bela viúva recebia muitas visitas de homens mais jovens, os quais ela entretinha com todos os recursos de que dispunha. Seios grandes, corpo fogoso e generosa nos presentes, seduzia em espécie, se preciso. E imaginavam o macabro ritual que ela preparava com inteligência e rapidez, sem vestígio.

Até que um dia, apaixonou-se por alguns minutos. Não teve coragem de interromper o coito com a lâmina da navalha que mantinha sob a cama. Adiou o talho por um tempo. O peito arfando, contemplou o estudante que dormitava lânguido ao seu lado. O corpo esguio, o rosto apolíneo, a pele lisa, o rapaz era a imagem encarnada do vulto que a visitava todas as noites, nos sonhos úmidos e trêmulos. Artúria perguntou ao parceiro quando ela o veria novamente. Sonolento, o jovem resmungou que ia começar a temporada de provas e que teria muito que estudar. A mulher tateou a lâmina fria, pronta para o rasgo. Mas o golpe, normalmente agudo, no centro da carótida, esbarrou no braço forte que o impediu. A luta foi breve. Em alguns segundos, o rapaz a dominara, prendeu-a entre as pernas no avesso do prazer. Com o punho, acertou-lhe a nuca. Artúria não estava morta, apenas desfalecida. Tomado de terror, o amante tentou fugir pelos fundos. Tropeçou no dispositivo que abria o alçapão e viu erguer-se a tampa que selava as covas.

A polícia chegou em alguns minutos. O rapaz narrou o episódio com espanto e em espasmos. Quando o detetive Lacerda entrou no quarto, Artúria balançava da viga de madeira, a língua enegrecida, os olhos como que contemplando os horrores que semeara. A ambulância chegou sem sirene, sem alarde. Ao emergir do côncavo da gruta, o policial baixou a lápide, como em respeito à galeria de mortos.

Pensou na avó, que lhe havia ensinado o respeito pelas palavras. Lembrou-se de uma noite em que a velha lhe explicara que diabo significava aquilo que está no meio, entre a ordem do divino e a demência do humano. E, de todos os prazeres que nos fisgam, a região mais mediana, e, por extensão, diabólica, é a virilha, meu filho.

Artúria havia descoberto isso, ainda menina, no colo intumescido de seu tio, autor da primeira trinca, do indizível dolo que a tragou quando ela ainda tinha fita no cabelo.