sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Labirinto




Uma ambulância, dois carros de polícia e vários veículos de emissoras de rádio e televisão bloqueavam a entrada do sobrado, no topo da Rua Água Funda. O detetive Lacerda encarou o enxame de microfones com angústia. Em seus quarenta anos de profissão, não se lembrava de um caso mais surpreendente. Insânia e crueldade. A voz estava mais rouca que de costume, sinal de quase três noites de pouco descanso e muito cigarro. Negociou com o grupo de repórteres que o comprimiam que ele apenas faria um relato, sem responder ou especular sobre qualquer aspecto, já que ele próprio era um poço de perguntas.

Virou-se mais uma vez para contemplar a casa. Cravada entre rocha e buraco, significado tupi-guarani de Jabaquara, a construção era uma das primeiras do distrito. Embora datado de 1964, o sobrado dos Mirantes, como era conhecido, tinha janelas alinhadas em estilo colonial, como se o arquiteto tivesse erguido um monumento aos escravos fugitivos que buscavam refúgio na antiga mata ou aos viajantes que pernoitavam nas dependências do sítio da Ressaca.

Detetive Lacerda conhecia bem o que a imprensa buscava. Sabia que os profissionais que se acotovelavam ali preferiam impacto à precisão. O que vale são os televisores, imãs gigantes, que levam os espectadores estupefatos ao subterrâneo humano. Principalmente se o fato for tecido na trama do cru, do não-cozido, do real quase ficção.

Pausadamente, buscando controlar a ansiedade perante as luzes, câmeras e fios, o policial iniciou o enredo insondável. Precisava de um prólogo. Apaixonado por geologia, contou que o território local era caracterizado, em toda sua extensão, por uma escura estrutura basáltica, com muitas fissuras de diversos tamanhos e profundidade variável. O bairro era um intricado labirinto de pedra e fenda. Era por esse motivo que os antigos fazendeiros haviam escolhido o lugar como cemitério de escravos. Bastava jogar o corpo em um dos vãos e algumas pás de terra e cal. Simples e barato, no despojo do que não era humano.

A casa se apoiava sobre camadas de rocha, cujo centro era um enorme rasgo, uma abertura no magma, que a laje da cozinha vedava, mas à qual dava acesso por meio de um alçapão camuflado no assoalho. A lacuna era como uma enorme gruta, uma caverna munida de uma escada moldada na própria rocha. Surpreendentemente seco devido ao eficiente sistema de vedação, o interior, com quase dois metros de altura, se bifurcava em vários corredores pelos quais os passos ecoavam anos de tormenta e tortura. As passagens desembocavam em pequenas câmeras com geometria diversificada: circulares, retangulares, hexagonais, muitas vezes simétricas, como se houvera um cálculo diabólico presidindo a escavação. Eram como casulos. Dotados de lâmpadas de cores diferentes, os espaços abrigavam vários tipos de sarcófago, cujo tampão deslizava facilmente ao toque.

Cada um, uma tumba. Dentro delas, não havia cadáveres mumificados, mas retalhos de incontáveis corpos de homens, preservados na fatia, o torso em uma catacumba, mãos em outra; recortes satânicos de pernas, pés, pênis.. O corpo masculino, cortado em minucioso exame anatômico, quase legista. Ao lado de cada sepulcro, um código numérico, gravado em uma etiqueta metálica.

No centro daquela colméia de devassidão, um arquivo com pastas e fichas remetia aos detalhes de cada componente do monstruoso quebra-cabeça em busca do homem ideal. Nomes, versões do que a havia atraído naquele exemplar: o tronco forte de um, as pernas atléticas de outro; as mãos viris do entregador de pizza, os pés elegantes do professor de dança; o farto falo que os jeans apertados do pintor sugeriam. Rostos colecionados por algum atributo: a cor do olho, agora de vidro, a perfeição dos dentes em um sorriso descarnado no eterno suporte do maxilar. Uma retrospectiva prolixa de como a aventura se iniciara e porque deveria terminar. Esse usava perfume barato, aquele tinha hálito insalubre, o outro morava longe demais.

Mas, deles, a mulher quisera retirar a essência, dissecar o atributo, depurar o singular, que ela rasgaria com esmero, em incisões cirúrgicas, somando nos múltiplos catálogos as partes do homem de seus sonhos de danação e dor. Os registros davam detalhes de como cada encontro havia transcorrido: o cardápio do jantar, as diferentes posições em que os homens a haviam penetrado, insuspeitos da teia que lhes tragaria a vida no fluir do gozo. E tudo ali, organizado em dossiê, documentado com sórdidos pormenores. Uma cartografia de desejo e desvio, um mapa rizomático de luxúria e loucura. Um completo arquivo morto. Literalmente.

O nome da proprietária seria mantido em sigilo. Mas os vizinhos logo a identificaram em seus depoimentos prazerosamente estarrecidos. Tratava-se de Artúria da Tocha Mirante, rica herdeira de muita terra na região. Mulher fina, educada nas melhores escolas da capital, havia enviuvado cedo, herdando ainda mais fortuna do marido, filho único de uma pequena família de imigrantes. Comentava-se agora que um dos braços encontrados na saleta triangular tinha a tatuagem de um navio, com a qual o marido cravara na pele a chegada ao Brasil.

Uns diziam que a bela viúva recebia muitas visitas de homens mais jovens, os quais ela entretinha com todos os recursos de que dispunha. Seios grandes, corpo fogoso e generosa nos presentes, seduzia em espécie, se preciso. E imaginavam o macabro ritual que ela preparava com inteligência e rapidez, sem vestígio.

Até que um dia, apaixonou-se por alguns minutos. Não teve coragem de interromper o coito com a lâmina da navalha que mantinha sob a cama. Adiou o talho por um tempo. O peito arfando, contemplou o estudante que dormitava lânguido ao seu lado. O corpo esguio, o rosto apolíneo, a pele lisa, o rapaz era a imagem encarnada do vulto que a visitava todas as noites, nos sonhos úmidos e trêmulos. Artúria perguntou ao parceiro quando ela o veria novamente. Sonolento, o jovem resmungou que ia começar a temporada de provas e que teria muito que estudar. A mulher tateou a lâmina fria, pronta para o rasgo. Mas o golpe, normalmente agudo, no centro da carótida, esbarrou no braço forte que o impediu. A luta foi breve. Em alguns segundos, o rapaz a dominara, prendeu-a entre as pernas no avesso do prazer. Com o punho, acertou-lhe a nuca. Artúria não estava morta, apenas desfalecida. Tomado de terror, o amante tentou fugir pelos fundos. Tropeçou no dispositivo que abria o alçapão e viu erguer-se a tampa que selava as covas.

A polícia chegou em alguns minutos. O rapaz narrou o episódio com espanto e em espasmos. Quando o detetive Lacerda entrou no quarto, Artúria balançava da viga de madeira, a língua enegrecida, os olhos como que contemplando os horrores que semeara. A ambulância chegou sem sirene, sem alarde. Ao emergir do côncavo da gruta, o policial baixou a lápide, como em respeito à galeria de mortos.

Pensou na avó, que lhe havia ensinado o respeito pelas palavras. Lembrou-se de uma noite em que a velha lhe explicara que diabo significava aquilo que está no meio, entre a ordem do divino e a demência do humano. E, de todos os prazeres que nos fisgam, a região mais mediana, e, por extensão, diabólica, é a virilha, meu filho.

Artúria havia descoberto isso, ainda menina, no colo intumescido de seu tio, autor da primeira trinca, do indizível dolo que a tragou quando ela ainda tinha fita no cabelo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário