A gruta sempre me fascinou. O vão, o oco, a caverna. Aquilo que falta, a fissura, a falha.
De um lado, o concreto: a cava em maciço calcário ou dolomita, escavada pela ação química ou mecânica das águas de rios e chuvas, a galeria subterrânea formada pelas forças da natureza e explorada por sondas, cartografada por modelos matemáticos, que auscultam o núcleo planetário. Depósito de metais, minerais, sal e enxofre, óleo e gás, minas de ouro, diamante, mármore.
Por outro lado – ou sobretudo – o imaginário. Os testemunhos dos espeleólogos descrevem a estranheza e a angústia das trevas totais, os estrondos inidentificáveis seguidos por silêncio profundo, o tempo em suspensão num mundo frágil, sujeito a transformações iminentes, brutais, provocadas por desmoronamentos, terremotos, fusões vulcânicas, inundações. Nesse universo subterrâneo, imperam destruição e violência.
Daí derivam o simbólico e o interdito: imenso mundo desconhecido, inacessível, abrigo de práticas religiosas, espaço esotérico, refúgio filosófico, como na fórmula sofista: no escuro, a via. A gruta como aldeia de sonhos e segredos, esfera de medos, mitos, magia. A gruta como percurso iniciático sobre o desconhecido, a busca pela imortalidade, a descida aos infernos de Orfeu no resgate de Eurídice.
A dualidade da gruta constitui assim seu sentido: território aberto à exploração científica, ao conhecimento, à descoberta mineral. Mas também terreno de trevas, daquilo que está oculto, cercado por mistérios, sítios impenetráveis, cujo aspecto inenarrável irriga o mundo. Nesse embate, deparamo-nos com a multiplicidade de pares semânticos: realidade e ilusão, vida e morte, luz e treva, fertilidade e esterilidade, racionalidade e irracionalidade, lucidez e loucura, consciência e inconsciente, yin e yang. Um universo polifônico que dá apoio à visão platônica: o mundo aqui das aparências e as aparências de um (sub)mundo de lá.
A ambigüidade vem também da concretude e do fluido. A gruta está sob os pés sem estar sob a vista. Ao reproduzir o mundo de cima, a gruta o deforma, faz dele caricaturas, filtra dele a luz para impor a sombra. O mundo de baixo tem como referência o mundo de cima, uma coletânea infindável de representações arquetípicas, destroços de memória antiga, de um mundo esquecido, habitado por tudo que já não é humano. A gruta une o paradoxo de um mundo estéril, mas cheio de vida. É nas trevas que se dá a germinação. As entranhas da terra fertilizam, abrigam, iluminam.
Espaço demoníaco, a fenda fantasmagórica acolhe a noite dos tempos, o mundo ctônico, porta de entrada para um lugar do qual na há saída, povoado por criaturas degeneradas, magos, monstros, fantasmas. Hordas de espíritos, gnomos, dragões, ciclopes cujo hálito dá forma às armas dos deuses. Satã habita cavernas sulfúricas, os oráculos povoam grutas taciturnas, sepulturas profundas. A gruta do oráculo de Trofônio, por exemplo, tem duas fontes – uma do esquecimento para apagar a lembrança dos mortos; e outra, da memória, para o visitante lembrar-se de quem foi e do que disse o oráculo. A falha na rocha leva a um túnel ao fim do qual um santuário subterrâneo é palco da revelação. A gruta homérica também tem duplo portal. A cratera de Boreu, para a entrada dos mortais, e a abertura de Notos, para a entrada dos deuses.
A gruta ocupa também espaço na tradição judaico-cristã. É uma gruta em Belém que acolhe o menino Jesus e que, em Gólgota, sepulta o filho de Deus. É uma caverna na Ilha de Patmos que abriga São João enquanto escreve o Apocalipse. É no interior de uma falha de pedra no deserto da Dalmácia que São Jerônimo busca guarita para traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para o latim. É na gruta de Lurdes que Bernadete Soubirou vislumbra a virgem. No islamismo, Maomé se retira em uma gruta, no Monte de Hira, próximo a Meca, para escrever a estrofe XCVI do alcorão.
Local de meditação contemplativa para Epicuro, é na formação rochosa sob o chão de Cumes que os senadores romanos buscam saída para cada crise da Roma republicana.
Santuário no qual se desenrolam rituais iniciáticos, artes divinatórias, terapias curativas, a gruta abriga sibilas, sacerdotisas, magas, pítias. Advinhas predizem o futuro no fundo da fenda de Aigai. É uma gruta de forma trapezoidal, próxima ao lago de Averno, em Nápoles, que guia Enéas para fundar Roma.
Morada de conhecimento e revelação, é em uma gruta que Quíron se distancia da delinqüência dos sátiros e adquire cultura civilizadora com a qual ensina toda uma galeria de heróis, entre os quais Hércules, Teseu e Jasão. Os deuses nascem em vãos de pedra: Zeus, no antro do Monte Ida, em Creta; Hermes, numa gruta da Arcádia; Hipnos, deus do sono, mora em uma gruta atravessada pelo rio do esquecimento, Lete. Entre os Maias, a deusa Lua é hóspede de uma gruta.
A gruta tem vocação ao segredo. De um lado, serve como quarto privado num longo corredor de prazeres: Ulisses e Calipso, em Ogívia; Tristão e Isolda, na gruta de Minne, na Cornuália; ninfas e sátiros, entre os quais Pan e Príapo. A gruta serve ainda como esconderijo. Nela se produzem armas de destruição, como os raios de Zeus, ou os aparatos com os quais Horus derrotou seu irmão, Seth, na cosmogonia egípcia. Ela serve de dispensa, onde o ciclope Polifemo estoca alimentos terrenos e divinos.
A gruta se ergue como monumento histórico. Nossos ancestrais registram em paredes de rocha toda uma narrativa coesa da oposição entre mundo real e mundo sagrado. As pinturas rupestres dão testemunho que a dualidade de sentidos inscritos na caverna é um dos elementos mais primitivos da constituição identitária do homem.
Esse é o percurso que fiz. Dual, ambíguo, heterogêneo, multifacetado. Quis narrar contos grotescos. Não no sentido romântico, mas no sentido dialético que esbocei aqui. Pensei em microcosmos, um vão para cada pecado e uma abertura para cada virtude. A força masculina do erro em trânsito e trâmite com a dinâmica feminina da absolvição. Guiado por Bachelard, entro no oco com uma vela nas mãos, e vejo a dança de múltiplas sombras na parede escura.
A gruta assusta. Mas no tremor do susto, o véu que se levanta, a bruma que se ergue. Antes que caia a noite de novo. Ou que a vela se consuma no calor da catacumba.
Os Sete:
Ira: Jandira
Preguiça: O dia seguinte
Avareza: A cesta de sonhos
Vaidade: Valéria
Gula: Delito
Inveja: Diva
Luxúria: O labirinto
As Sete:
Paciência: Achados e Perdidos
Diligência: Maria
Generosidade: Rio Negro
Humildade: As Três Marias
Temperança: A Velha Filó
Caridade:
Castidade: Poluição
De um lado, o concreto: a cava em maciço calcário ou dolomita, escavada pela ação química ou mecânica das águas de rios e chuvas, a galeria subterrânea formada pelas forças da natureza e explorada por sondas, cartografada por modelos matemáticos, que auscultam o núcleo planetário. Depósito de metais, minerais, sal e enxofre, óleo e gás, minas de ouro, diamante, mármore.
Por outro lado – ou sobretudo – o imaginário. Os testemunhos dos espeleólogos descrevem a estranheza e a angústia das trevas totais, os estrondos inidentificáveis seguidos por silêncio profundo, o tempo em suspensão num mundo frágil, sujeito a transformações iminentes, brutais, provocadas por desmoronamentos, terremotos, fusões vulcânicas, inundações. Nesse universo subterrâneo, imperam destruição e violência.
Daí derivam o simbólico e o interdito: imenso mundo desconhecido, inacessível, abrigo de práticas religiosas, espaço esotérico, refúgio filosófico, como na fórmula sofista: no escuro, a via. A gruta como aldeia de sonhos e segredos, esfera de medos, mitos, magia. A gruta como percurso iniciático sobre o desconhecido, a busca pela imortalidade, a descida aos infernos de Orfeu no resgate de Eurídice.
A dualidade da gruta constitui assim seu sentido: território aberto à exploração científica, ao conhecimento, à descoberta mineral. Mas também terreno de trevas, daquilo que está oculto, cercado por mistérios, sítios impenetráveis, cujo aspecto inenarrável irriga o mundo. Nesse embate, deparamo-nos com a multiplicidade de pares semânticos: realidade e ilusão, vida e morte, luz e treva, fertilidade e esterilidade, racionalidade e irracionalidade, lucidez e loucura, consciência e inconsciente, yin e yang. Um universo polifônico que dá apoio à visão platônica: o mundo aqui das aparências e as aparências de um (sub)mundo de lá.
A ambigüidade vem também da concretude e do fluido. A gruta está sob os pés sem estar sob a vista. Ao reproduzir o mundo de cima, a gruta o deforma, faz dele caricaturas, filtra dele a luz para impor a sombra. O mundo de baixo tem como referência o mundo de cima, uma coletânea infindável de representações arquetípicas, destroços de memória antiga, de um mundo esquecido, habitado por tudo que já não é humano. A gruta une o paradoxo de um mundo estéril, mas cheio de vida. É nas trevas que se dá a germinação. As entranhas da terra fertilizam, abrigam, iluminam.
Espaço demoníaco, a fenda fantasmagórica acolhe a noite dos tempos, o mundo ctônico, porta de entrada para um lugar do qual na há saída, povoado por criaturas degeneradas, magos, monstros, fantasmas. Hordas de espíritos, gnomos, dragões, ciclopes cujo hálito dá forma às armas dos deuses. Satã habita cavernas sulfúricas, os oráculos povoam grutas taciturnas, sepulturas profundas. A gruta do oráculo de Trofônio, por exemplo, tem duas fontes – uma do esquecimento para apagar a lembrança dos mortos; e outra, da memória, para o visitante lembrar-se de quem foi e do que disse o oráculo. A falha na rocha leva a um túnel ao fim do qual um santuário subterrâneo é palco da revelação. A gruta homérica também tem duplo portal. A cratera de Boreu, para a entrada dos mortais, e a abertura de Notos, para a entrada dos deuses.
A gruta ocupa também espaço na tradição judaico-cristã. É uma gruta em Belém que acolhe o menino Jesus e que, em Gólgota, sepulta o filho de Deus. É uma caverna na Ilha de Patmos que abriga São João enquanto escreve o Apocalipse. É no interior de uma falha de pedra no deserto da Dalmácia que São Jerônimo busca guarita para traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para o latim. É na gruta de Lurdes que Bernadete Soubirou vislumbra a virgem. No islamismo, Maomé se retira em uma gruta, no Monte de Hira, próximo a Meca, para escrever a estrofe XCVI do alcorão.
Local de meditação contemplativa para Epicuro, é na formação rochosa sob o chão de Cumes que os senadores romanos buscam saída para cada crise da Roma republicana.
Santuário no qual se desenrolam rituais iniciáticos, artes divinatórias, terapias curativas, a gruta abriga sibilas, sacerdotisas, magas, pítias. Advinhas predizem o futuro no fundo da fenda de Aigai. É uma gruta de forma trapezoidal, próxima ao lago de Averno, em Nápoles, que guia Enéas para fundar Roma.
Morada de conhecimento e revelação, é em uma gruta que Quíron se distancia da delinqüência dos sátiros e adquire cultura civilizadora com a qual ensina toda uma galeria de heróis, entre os quais Hércules, Teseu e Jasão. Os deuses nascem em vãos de pedra: Zeus, no antro do Monte Ida, em Creta; Hermes, numa gruta da Arcádia; Hipnos, deus do sono, mora em uma gruta atravessada pelo rio do esquecimento, Lete. Entre os Maias, a deusa Lua é hóspede de uma gruta.
A gruta tem vocação ao segredo. De um lado, serve como quarto privado num longo corredor de prazeres: Ulisses e Calipso, em Ogívia; Tristão e Isolda, na gruta de Minne, na Cornuália; ninfas e sátiros, entre os quais Pan e Príapo. A gruta serve ainda como esconderijo. Nela se produzem armas de destruição, como os raios de Zeus, ou os aparatos com os quais Horus derrotou seu irmão, Seth, na cosmogonia egípcia. Ela serve de dispensa, onde o ciclope Polifemo estoca alimentos terrenos e divinos.
A gruta se ergue como monumento histórico. Nossos ancestrais registram em paredes de rocha toda uma narrativa coesa da oposição entre mundo real e mundo sagrado. As pinturas rupestres dão testemunho que a dualidade de sentidos inscritos na caverna é um dos elementos mais primitivos da constituição identitária do homem.
Esse é o percurso que fiz. Dual, ambíguo, heterogêneo, multifacetado. Quis narrar contos grotescos. Não no sentido romântico, mas no sentido dialético que esbocei aqui. Pensei em microcosmos, um vão para cada pecado e uma abertura para cada virtude. A força masculina do erro em trânsito e trâmite com a dinâmica feminina da absolvição. Guiado por Bachelard, entro no oco com uma vela nas mãos, e vejo a dança de múltiplas sombras na parede escura.
A gruta assusta. Mas no tremor do susto, o véu que se levanta, a bruma que se ergue. Antes que caia a noite de novo. Ou que a vela se consuma no calor da catacumba.
Os Sete:
Ira: Jandira
Preguiça: O dia seguinte
Avareza: A cesta de sonhos
Vaidade: Valéria
Gula: Delito
Inveja: Diva
Luxúria: O labirinto
As Sete:
Paciência: Achados e Perdidos
Diligência: Maria
Generosidade: Rio Negro
Humildade: As Três Marias
Temperança: A Velha Filó
Caridade:
Castidade: Poluição
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