domingo, 9 de maio de 2010

A Velha Filó



Jóia da pequena cidade, a velha Filó era devota de muitos santos que dispunha em permanente procissão sobre a cômoda de madeira escura. Mulher forte e independente, tinha uma outra paixão. Gostava do amanhecer. Despertava muito cedo e se preparava para o grande encontro com o criador e mais um mergulho em si mesma.

A varanda da casa antiga, no alto da rua sem saída, era sua sala de cinema, onde saudava contemplativa o esplendor da manhã parturiente. O escuro do céu se esvaía pouco a pouco, como se a noite se cansasse das estrelas. Daí, vinham os pequenos lampejos de cor no fundo do vale, promessas de luz para mais um dia de seus quase cem anos. Lentamente, os pássaros transformavam os pios em gorgeios , verdadeira trilha sonora aos matizes de vermelho, laranja e azul. O quintal era pura fragrância de rosas.

A bisa Filó sentava na cadeira de balanço, embrulhada em um xale, que lhe era como segunda pele. A caneca de chá fumegante aquecia as mãos e trazia ao paladar o sabor de camomila. Quieta e atenta, na paz de quem já viu de tudo um tanto, saudava cada pequena alteração, no que chamava a grande tela do Senhor. Os olhos repletos de céu varriam a imensidão. Tudo era promessa cumprida, milagre paupável de uma existência quase plena.

E era engano chamar aquilo de passa-tempo. Para ela, o nome era volta-tempo. Imersa no espetáculo, a mulher se lembrava de uma vida longa. Da fazenda perdida ainda menina, do véu de renda francesa que ganhara da madrinha para a primeira comunhão. Das quermesses, dos tropeiros, do primeiro comichão. E a cada rasgo de luz, iluminavam-se memórias, coloriam-se lembranças. O primeiro filho, o segundo, o terceiro, num rosário de rostinhos. Foram oito, que, férteis como ela, deram-lhe netos e bisnetos, numa sucessão de nomes, datas e fraldas.

Assim voltava no tempo, a bordo de tudo que se foi, mas que ainda é na lembrança da gente. Com a alma encharcada de som e luz, a bisa ficava um bom tempo na varanda, até que sua ajudante chegasse e a levasse para o banho diário, regado a lavanda e pó-de-arroz.

Como de costume, às sete-e-meia, a voz amiga da acompanhante saudou bisa Filó.

- Bom dia, dona Filó! Gostou do amanhecer? A pergunta era melódica, doce.

A resposta é que não veio.

- Dona Filó? Dona...!

O rosto plácido, os olhos calmos, a velha Filó se juntara ao sol.

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