segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Gruta


A gruta sempre me fascinou. O vão, o oco, a caverna. Aquilo que falta, a fissura, a falha.

De um lado, o concreto: a cava em maciço calcário ou dolomita, escavada pela ação química ou mecânica das águas de rios e chuvas, a galeria subterrânea formada pelas forças da natureza e explorada por sondas, cartografada por modelos matemáticos, que auscultam o núcleo planetário. Depósito de metais, minerais, sal e enxofre, óleo e gás, minas de ouro, diamante, mármore.

Por outro lado – ou sobretudo – o imaginário. Os testemunhos dos espeleólogos descrevem a estranheza e a angústia das trevas totais, os estrondos inidentificáveis seguidos por silêncio profundo, o tempo em suspensão num mundo frágil, sujeito a transformações iminentes, brutais, provocadas por desmoronamentos, terremotos, fusões vulcânicas, inundações. Nesse universo subterrâneo, imperam destruição e violência.

Daí derivam o simbólico e o interdito: imenso mundo desconhecido, inacessível, abrigo de práticas religiosas, espaço esotérico, refúgio filosófico, como na fórmula sofista: no escuro, a via. A gruta como aldeia de sonhos e segredos, esfera de medos, mitos, magia. A gruta como percurso iniciático sobre o desconhecido, a busca pela imortalidade, a descida aos infernos de Orfeu no resgate de Eurídice.

A dualidade da gruta constitui assim seu sentido: território aberto à exploração científica, ao conhecimento, à descoberta mineral. Mas também terreno de trevas, daquilo que está oculto, cercado por mistérios, sítios impenetráveis, cujo aspecto inenarrável irriga o mundo. Nesse embate, deparamo-nos com a multiplicidade de pares semânticos: realidade e ilusão, vida e morte, luz e treva, fertilidade e esterilidade, racionalidade e irracionalidade, lucidez e loucura, consciência e inconsciente, yin e yang. Um universo polifônico que dá apoio à visão platônica: o mundo aqui das aparências e as aparências de um (sub)mundo de lá.

A ambigüidade vem também da concretude e do fluido. A gruta está sob os pés sem estar sob a vista. Ao reproduzir o mundo de cima, a gruta o deforma, faz dele caricaturas, filtra dele a luz para impor a sombra. O mundo de baixo tem como referência o mundo de cima, uma coletânea infindável de representações arquetípicas, destroços de memória antiga, de um mundo esquecido, habitado por tudo que já não é humano. A gruta une o paradoxo de um mundo estéril, mas cheio de vida. É nas trevas que se dá a germinação. As entranhas da terra fertilizam, abrigam, iluminam.

Espaço demoníaco, a fenda fantasmagórica acolhe a noite dos tempos, o mundo ctônico, porta de entrada para um lugar do qual na há saída, povoado por criaturas degeneradas, magos, monstros, fantasmas. Hordas de espíritos, gnomos, dragões, ciclopes cujo hálito dá forma às armas dos deuses. Satã habita cavernas sulfúricas, os oráculos povoam grutas taciturnas, sepulturas profundas. A gruta do oráculo de Trofônio, por exemplo, tem duas fontes – uma do esquecimento para apagar a lembrança dos mortos; e outra, da memória, para o visitante lembrar-se de quem foi e do que disse o oráculo. A falha na rocha leva a um túnel ao fim do qual um santuário subterrâneo é palco da revelação. A gruta homérica também tem duplo portal. A cratera de Boreu, para a entrada dos mortais, e a abertura de Notos, para a entrada dos deuses.

A gruta ocupa também espaço na tradição judaico-cristã. É uma gruta em Belém que acolhe o menino Jesus e que, em Gólgota, sepulta o filho de Deus. É uma caverna na Ilha de Patmos que abriga São João enquanto escreve o Apocalipse. É no interior de uma falha de pedra no deserto da Dalmácia que São Jerônimo busca guarita para traduzir a Bíblia do hebraico e do grego para o latim. É na gruta de Lurdes que Bernadete Soubirou vislumbra a virgem. No islamismo, Maomé se retira em uma gruta, no Monte de Hira, próximo a Meca, para escrever a estrofe XCVI do alcorão.

Local de meditação contemplativa para Epicuro, é na formação rochosa sob o chão de Cumes que os senadores romanos buscam saída para cada crise da Roma republicana.

Santuário no qual se desenrolam rituais iniciáticos, artes divinatórias, terapias curativas, a gruta abriga sibilas, sacerdotisas, magas, pítias. Advinhas predizem o futuro no fundo da fenda de Aigai. É uma gruta de forma trapezoidal, próxima ao lago de Averno, em Nápoles, que guia Enéas para fundar Roma.

Morada de conhecimento e revelação, é em uma gruta que Quíron se distancia da delinqüência dos sátiros e adquire cultura civilizadora com a qual ensina toda uma galeria de heróis, entre os quais Hércules, Teseu e Jasão. Os deuses nascem em vãos de pedra: Zeus, no antro do Monte Ida, em Creta; Hermes, numa gruta da Arcádia; Hipnos, deus do sono, mora em uma gruta atravessada pelo rio do esquecimento, Lete. Entre os Maias, a deusa Lua é hóspede de uma gruta.

A gruta tem vocação ao segredo. De um lado, serve como quarto privado num longo corredor de prazeres: Ulisses e Calipso, em Ogívia; Tristão e Isolda, na gruta de Minne, na Cornuália; ninfas e sátiros, entre os quais Pan e Príapo. A gruta serve ainda como esconderijo. Nela se produzem armas de destruição, como os raios de Zeus, ou os aparatos com os quais Horus derrotou seu irmão, Seth, na cosmogonia egípcia. Ela serve de dispensa, onde o ciclope Polifemo estoca alimentos terrenos e divinos.

A gruta se ergue como monumento histórico. Nossos ancestrais registram em paredes de rocha toda uma narrativa coesa da oposição entre mundo real e mundo sagrado. As pinturas rupestres dão testemunho que a dualidade de sentidos inscritos na caverna é um dos elementos mais primitivos da constituição identitária do homem.

Esse é o percurso que fiz. Dual, ambíguo, heterogêneo, multifacetado. Quis narrar contos grotescos. Não no sentido romântico, mas no sentido dialético que esbocei aqui. Pensei em microcosmos, um vão para cada pecado e uma abertura para cada virtude. A força masculina do erro em trânsito e trâmite com a dinâmica feminina da absolvição. Guiado por Bachelard, entro no oco com uma vela nas mãos, e vejo a dança de múltiplas sombras na parede escura.

A gruta assusta. Mas no tremor do susto, o véu que se levanta, a bruma que se ergue. Antes que caia a noite de novo. Ou que a vela se consuma no calor da catacumba.







Os Sete:

Ira: Jandira
Preguiça: O dia seguinte
Avareza: A cesta de sonhos
Vaidade: Valéria
Gula: Delito
Inveja: Diva
Luxúria: O labirinto


As Sete:

Paciência: Achados e Perdidos
Diligência: Maria
Generosidade: Rio Negro
Humildade: As Três Marias
Temperança: A Velha Filó
Caridade:
Castidade: Poluição

domingo, 9 de maio de 2010

A Cesta de Sonhos


Tereza cultivava os sonhos da noite como quem planta uma horta. Queria nutrir-se deles, revivê-los em detalhe na manhã seguinte. Seu universo noturno era povoado de imagens coloridas, que ganhavam lucidez quando relembradas à luz do dia.

Sonhava com campos de girassóis gigantes, banhados em um amarelo intenso que ela escalava com facilidade. Sentada no banco da praça, entendia as flores como uma metáfora do sol. O sol multiplicado no milagre de cada dia. Sempre gostou do sol, que lhe aquecia o corpo franzino e lhe refazia o equilíbrio.

Outras vezes, visitava construções góticas, de cujos segredos havia sido testemunha. O padre assassinado, o filho bastardo do rei, os rituais secretos de um grupo de nobres. Nesse labirinto de pedra e silêncio, via sua própria família. O pai, morto há muito tempo, em briga de bar; o meio-irmão que sua mãe lhe dera alguns anos depois; os professores da escola municipal, onde era assistente, que a tratavam com polidez, mas sem envolvimento.

Algumas noites, prospectava reservas de diamantes, perto da curva do rio, com os quais fazia colares e coroas, num tesouro de valor incalculável. Com os olhos abertos, Tereza decifrava o que os olhos fechados lhe plantavam na memória. Essa coleção de pedraria era a poupança que erguia com lento suor para um dia ir-se dali.

Havia sonhos em que ela molhava os pés descalços em minas de água cristalina, paridas em lençóis subterrâneos que ela percorria, imersa, respirando por guelras que lhe brotavam no lugar das orelhas. O dia dissipava em luz o que a noite escondia em espessura de sentido. Tereza sabia que a água era o trem por onde ela poderia fluir, transformar-se em peixe. E partir.

Sonhava sobre plantas medicinais que aliviavam a dor e curavam tumores com apenas um emplastro. Aqui, Tereza reconhecia a vontade enorme de livrar-se das terríveis pinceladas de uma hérnia de disco que ela teria que operar um dia, se quisesse andar ereta e evitar as crises que a prendiam na cama em noite quente de quermesse.

E Tereza sonhava na vastidão da noite e replantava vida na clareza do dia. Ávida por suas aventuras noturnas, a mulher começou a querer dormir mais longamente. Primeiro, comiam-se algumas horas da manhã, o que lhe fazia chegar atrasada para o trabalho. Depois, vieram as sonecas após o almoço, que, breves, esticaram-se em sonos mais contínuos.

Daí, Tereza começou a dormir o dia inteiro, levantando-se apenas para aliviar-se. E, nesse sono sem trégua, um sonho após o outro. Tereza reescrevia sua história com imagens que tecia feito aranha.

A mulher queria mais. Agora não bastava sonhar seus sonhos. Queria sonhar aqueles de cada morador do vilarejo. Como um mar revolto, varria com avareza as imagens que brotavam das cabeças adormecidas, antes que elas trouxessem repouso à alma. Sentinela incansável, a mulher vislumbrava na bruma do irreal o enredo desconexo de seus semelhantes e fincava nele sua autoria. Roubava-lhes o sonho antes dele amadurecer. Cérbero faminto, apropriava-se com destreza da narrativa alheia, que tomava para si, como vidas possíveis que não viveria. Mas que devorava sem salivar. Privava do descanso uma cidade inteira, porque dormir sem sonhar é viver sem existir. E Tereza prosseguia por dias e noites, invadindo o privado, seqüestrando o íntimo, tomando por seu o que não lhe era devido.

A pequena cidade foi perdendo o vigor. Durante o dia, os homens não tinham força para a lida, as mulheres sentiam-se fracas nas tarefas, as crianças, irritadiças, não queriam brincar. Os velhos já não podiam mais encarar sua própria finitude; os jovens sentiam horror ao envelhecer. Aos poucos, o vilarejo ia desatando os nós que soldam as pessoas. O padeiro desdenhou a massa, o farmacêutico confundiu as fórmulas, o vigário esqueceu as preces, o coveiro não fechou a sepultura. A cidadezinha ia-se diluindo em limbo, lânguida e extenuada.

Indiferente ao calor dos dias, ou ao frescor das noites, os habitantes negligenciaram a aparência. Abandonaram os banhos, esqueceram-se das roupas, andavam pelas ruas sem saber ao certo porque iam, de onde vinham. E confundiam-se uns com os outros. Uma mulher achava que o vizinho era seu filho, enquanto um homem tomava o compadre por avô. Já não se lembravam mais dos nomes de batismo. Zumbis, caminhavam com passos curtos, hesitando entre o passo dado e o próximo em esboço. E tentavam desesperadamente dormir. Mas se dormiam, não era repouso que encontravam. Era uma noite em negro, sono sem sonho, morte em vida.
Só Tereza florescia, a pele rosada, o ventre pleno, como abelha rainha prenha de mel, fincando na colméia o ferrão do egoísmo.

Um dia, um viajante buscou guarita. O hotel era pousada do abandono. As pessoas em farrapos tinham os olhos vermelhos, o rosto macilento, os dedos longos. Perguntou o que acontecia. Ninguém lhe soube explicar. Apenas que pairava sobre um vilarejo uma enorme exaustão, uma seca de descanso, um mundo de sofrimento. Amedrontado, o homem deixou de seguir viagem, pelo tardio da hora.

Tentou dormir. Mas o quarto tinha um cheiro insuportável, mistura de mofo e mijo. Resolveu caminhar pela noite quente. Viu que as janelas das casas continuavam abertas, as portas por fechar. Apenas uma morada, na descida que leva ao cemitério, recebia a noite como se deve. Curioso, colou o ouvido na janela em busca de sinal de sanidade. Nada. Foi até a varanda e levou o rosto à porta, que apenas encostada, abriu-se com o toque. Da sala pequena, o homem avistou o quarto. Uma pequena luz de vela tremia no querosene que a beliscava. Entrou. Quisera não ter entrado.

Na cama, Tereza estava faminta. Com os cabelos em desalinho, o rosto em sorriso demente, lhe perguntou com voz de treva:

- Onde está meu sonho? O que fez com ele? Como pode não sonhar o que é meu? Como ousa não dormir, e dormir, não sonhar?

O tiro vazou-lhe o olho e cravou sangue e cérebro na parede.

Ninguém acordou.

A Velha Filó



Jóia da pequena cidade, a velha Filó era devota de muitos santos que dispunha em permanente procissão sobre a cômoda de madeira escura. Mulher forte e independente, tinha uma outra paixão. Gostava do amanhecer. Despertava muito cedo e se preparava para o grande encontro com o criador e mais um mergulho em si mesma.

A varanda da casa antiga, no alto da rua sem saída, era sua sala de cinema, onde saudava contemplativa o esplendor da manhã parturiente. O escuro do céu se esvaía pouco a pouco, como se a noite se cansasse das estrelas. Daí, vinham os pequenos lampejos de cor no fundo do vale, promessas de luz para mais um dia de seus quase cem anos. Lentamente, os pássaros transformavam os pios em gorgeios , verdadeira trilha sonora aos matizes de vermelho, laranja e azul. O quintal era pura fragrância de rosas.

A bisa Filó sentava na cadeira de balanço, embrulhada em um xale, que lhe era como segunda pele. A caneca de chá fumegante aquecia as mãos e trazia ao paladar o sabor de camomila. Quieta e atenta, na paz de quem já viu de tudo um tanto, saudava cada pequena alteração, no que chamava a grande tela do Senhor. Os olhos repletos de céu varriam a imensidão. Tudo era promessa cumprida, milagre paupável de uma existência quase plena.

E era engano chamar aquilo de passa-tempo. Para ela, o nome era volta-tempo. Imersa no espetáculo, a mulher se lembrava de uma vida longa. Da fazenda perdida ainda menina, do véu de renda francesa que ganhara da madrinha para a primeira comunhão. Das quermesses, dos tropeiros, do primeiro comichão. E a cada rasgo de luz, iluminavam-se memórias, coloriam-se lembranças. O primeiro filho, o segundo, o terceiro, num rosário de rostinhos. Foram oito, que, férteis como ela, deram-lhe netos e bisnetos, numa sucessão de nomes, datas e fraldas.

Assim voltava no tempo, a bordo de tudo que se foi, mas que ainda é na lembrança da gente. Com a alma encharcada de som e luz, a bisa ficava um bom tempo na varanda, até que sua ajudante chegasse e a levasse para o banho diário, regado a lavanda e pó-de-arroz.

Como de costume, às sete-e-meia, a voz amiga da acompanhante saudou bisa Filó.

- Bom dia, dona Filó! Gostou do amanhecer? A pergunta era melódica, doce.

A resposta é que não veio.

- Dona Filó? Dona...!

O rosto plácido, os olhos calmos, a velha Filó se juntara ao sol.