domingo, 9 de maio de 2010

A Cesta de Sonhos


Tereza cultivava os sonhos da noite como quem planta uma horta. Queria nutrir-se deles, revivê-los em detalhe na manhã seguinte. Seu universo noturno era povoado de imagens coloridas, que ganhavam lucidez quando relembradas à luz do dia.

Sonhava com campos de girassóis gigantes, banhados em um amarelo intenso que ela escalava com facilidade. Sentada no banco da praça, entendia as flores como uma metáfora do sol. O sol multiplicado no milagre de cada dia. Sempre gostou do sol, que lhe aquecia o corpo franzino e lhe refazia o equilíbrio.

Outras vezes, visitava construções góticas, de cujos segredos havia sido testemunha. O padre assassinado, o filho bastardo do rei, os rituais secretos de um grupo de nobres. Nesse labirinto de pedra e silêncio, via sua própria família. O pai, morto há muito tempo, em briga de bar; o meio-irmão que sua mãe lhe dera alguns anos depois; os professores da escola municipal, onde era assistente, que a tratavam com polidez, mas sem envolvimento.

Algumas noites, prospectava reservas de diamantes, perto da curva do rio, com os quais fazia colares e coroas, num tesouro de valor incalculável. Com os olhos abertos, Tereza decifrava o que os olhos fechados lhe plantavam na memória. Essa coleção de pedraria era a poupança que erguia com lento suor para um dia ir-se dali.

Havia sonhos em que ela molhava os pés descalços em minas de água cristalina, paridas em lençóis subterrâneos que ela percorria, imersa, respirando por guelras que lhe brotavam no lugar das orelhas. O dia dissipava em luz o que a noite escondia em espessura de sentido. Tereza sabia que a água era o trem por onde ela poderia fluir, transformar-se em peixe. E partir.

Sonhava sobre plantas medicinais que aliviavam a dor e curavam tumores com apenas um emplastro. Aqui, Tereza reconhecia a vontade enorme de livrar-se das terríveis pinceladas de uma hérnia de disco que ela teria que operar um dia, se quisesse andar ereta e evitar as crises que a prendiam na cama em noite quente de quermesse.

E Tereza sonhava na vastidão da noite e replantava vida na clareza do dia. Ávida por suas aventuras noturnas, a mulher começou a querer dormir mais longamente. Primeiro, comiam-se algumas horas da manhã, o que lhe fazia chegar atrasada para o trabalho. Depois, vieram as sonecas após o almoço, que, breves, esticaram-se em sonos mais contínuos.

Daí, Tereza começou a dormir o dia inteiro, levantando-se apenas para aliviar-se. E, nesse sono sem trégua, um sonho após o outro. Tereza reescrevia sua história com imagens que tecia feito aranha.

A mulher queria mais. Agora não bastava sonhar seus sonhos. Queria sonhar aqueles de cada morador do vilarejo. Como um mar revolto, varria com avareza as imagens que brotavam das cabeças adormecidas, antes que elas trouxessem repouso à alma. Sentinela incansável, a mulher vislumbrava na bruma do irreal o enredo desconexo de seus semelhantes e fincava nele sua autoria. Roubava-lhes o sonho antes dele amadurecer. Cérbero faminto, apropriava-se com destreza da narrativa alheia, que tomava para si, como vidas possíveis que não viveria. Mas que devorava sem salivar. Privava do descanso uma cidade inteira, porque dormir sem sonhar é viver sem existir. E Tereza prosseguia por dias e noites, invadindo o privado, seqüestrando o íntimo, tomando por seu o que não lhe era devido.

A pequena cidade foi perdendo o vigor. Durante o dia, os homens não tinham força para a lida, as mulheres sentiam-se fracas nas tarefas, as crianças, irritadiças, não queriam brincar. Os velhos já não podiam mais encarar sua própria finitude; os jovens sentiam horror ao envelhecer. Aos poucos, o vilarejo ia desatando os nós que soldam as pessoas. O padeiro desdenhou a massa, o farmacêutico confundiu as fórmulas, o vigário esqueceu as preces, o coveiro não fechou a sepultura. A cidadezinha ia-se diluindo em limbo, lânguida e extenuada.

Indiferente ao calor dos dias, ou ao frescor das noites, os habitantes negligenciaram a aparência. Abandonaram os banhos, esqueceram-se das roupas, andavam pelas ruas sem saber ao certo porque iam, de onde vinham. E confundiam-se uns com os outros. Uma mulher achava que o vizinho era seu filho, enquanto um homem tomava o compadre por avô. Já não se lembravam mais dos nomes de batismo. Zumbis, caminhavam com passos curtos, hesitando entre o passo dado e o próximo em esboço. E tentavam desesperadamente dormir. Mas se dormiam, não era repouso que encontravam. Era uma noite em negro, sono sem sonho, morte em vida.
Só Tereza florescia, a pele rosada, o ventre pleno, como abelha rainha prenha de mel, fincando na colméia o ferrão do egoísmo.

Um dia, um viajante buscou guarita. O hotel era pousada do abandono. As pessoas em farrapos tinham os olhos vermelhos, o rosto macilento, os dedos longos. Perguntou o que acontecia. Ninguém lhe soube explicar. Apenas que pairava sobre um vilarejo uma enorme exaustão, uma seca de descanso, um mundo de sofrimento. Amedrontado, o homem deixou de seguir viagem, pelo tardio da hora.

Tentou dormir. Mas o quarto tinha um cheiro insuportável, mistura de mofo e mijo. Resolveu caminhar pela noite quente. Viu que as janelas das casas continuavam abertas, as portas por fechar. Apenas uma morada, na descida que leva ao cemitério, recebia a noite como se deve. Curioso, colou o ouvido na janela em busca de sinal de sanidade. Nada. Foi até a varanda e levou o rosto à porta, que apenas encostada, abriu-se com o toque. Da sala pequena, o homem avistou o quarto. Uma pequena luz de vela tremia no querosene que a beliscava. Entrou. Quisera não ter entrado.

Na cama, Tereza estava faminta. Com os cabelos em desalinho, o rosto em sorriso demente, lhe perguntou com voz de treva:

- Onde está meu sonho? O que fez com ele? Como pode não sonhar o que é meu? Como ousa não dormir, e dormir, não sonhar?

O tiro vazou-lhe o olho e cravou sangue e cérebro na parede.

Ninguém acordou.

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